Quando o cidadão se transforma em vítima, situação que aliás está cada vez mais recorrente, quase sempre fica na dúvida do que fazer, a quem recorrer e o que pode esperar de resultados quanto aos seus prejuízos, sejam materiais ou mesmo psicológicos. A maioria das pessoas não conhece a funcionalidade do sistema policial brasileiro. E o principal: funciona mesmo? É comum a pessoa que se envolve num acidente de trânsito, sem vítima, procurar delegacias de polícia para a registrar o conhecido BO – atual RDO – e só depois de muito tempo perdido, vem a saber que não era ali que deveria ter buscado solução para o seu problema. Essa confusão em relação a quem cabe prestar serviço de segurança pública, representando o poder público, começa com regulamentação trazida pela nossa Lei Maior. A Constituição identifica órgãos públicos de segurança e estabelece competências e atribuições. Para crimes apenados com mais de dois anos de detenção, registra-se o Termo Circunstanciado de Ocorrência – TCO, e para os crimes com penas superiores a dois anos, lavra-se o Registro Digital de Ocorrência – RDO. Só essa diferenciação de tipo de documento a ser registrado para início de investigação policial, representa confusão para o cidadão que procura um órgão de segurança. Mudar isso para aprimorar, ser mais funcional, é sem dúvida muito complexo, envolvendo muitos fatores.

O tema segurança pública só passa a ser tratado como matéria constitucional, a partir da Constituição Federal de 1988, que traz um capítulo especial para regulamentar o assunto. A Carta Magna de 1967, fazia somente menção à Segurança Nacional, talvez até por influência do regime político em vigor, à época, dispondo que toda pessoa natural ou jurídica era responsável por esse tipo de segurança, mas não mencionava o termo segurança pública. Já o atual art. 144 da CF, dispõe que a segurança pública é primeiro DEVER do Estado, aí compreendido a Poder Público nas três esferas de atuação, Federal, Estadual e Municipal. Lembrando que o município tem responsabilidade tão somente em relação a prevenção primária da violência e da criminalidade. Noutras palavras, esses entes federativos têm obrigação legal de propiciar segurança à população, conforme cada um dos tipos de atribuição legal. Não fazer isso, cabe responsabilização de reparação pelos eventuais danos sofridos pelas vítimas, resultantes de crimes que não foram impedidos e deveriam tê-lo sido, pela pronta e eficaz atuação do Estado. No mesmo artigo, também dispõe que a segurança pública é DIREITO e RESPONSABILIDADE de todos. A existência de um direito só reforça a responsabilidade de quem tem que agir. Quanto à segurança pública ser de responsabilidade de todos, implica numa necessária participação da população na formulação de planos voltados para a área de segurança. Dessa forma, um buraco na rua que venha a provocar um acidente com efetivo dano ou eventual lesão à integridade física das pessoas, pode ser cobrado do município, pois a ele cabe oferecer condições seguras do leito carroçável, evitando que tais transtornos aconteçam. Por outro lado, aquele que tem a sua moradia roubada ou mesmo furtada, em tese, tem o direito de buscar indenização devida junto ao Estado, pois que a esse caberia ofertar condições mínimas de segurança pública e com isso evitar o delito. É certo que o crime acontece no território dos municípios e cobrar dele é mais fácil do que cobrar do governo estadual, que fica mais distante da realidade local. O objetivo da segurança pública é buscar a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio. Primeiro se garante a integridade física das pessoas e em seguida dos seus bens. O direito à vida sempre deve prevalecer em relação a qualquer outro interesse, ainda que seja o patrimônio das pessoas, mencionado pela Constituição. Para que esses objetivos de segurança pública sejam atingidos, a Carta Magna indica quais são os órgãos públicos de segurança pública que devem atuar nesse sentido.


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À Polícia Federal cabe exercer com exclusividade as atividades de polícia judiciária de natureza federal, ou seja, naqueles casos em que a ação criminosa atinja bens, serviços e interesses da União, bem como nos casos em que o delito tenha repercussão interestadual ou mesmo internacional. Cabe ainda à PF atuar no combate ao tráfico de drogas, nos crimes de contrabando ou descaminho. A PF é dirigida por Delegados de Polícia, sendo subordinada ao Ministro da Justiça, sendo fiscalizada internamente por Corregedoria e externamente pelo Ministério Público federal e Justiça Federal. Tem competência para atuar em todo o território nacional, inclusive em auxilio às Forças Armadas, nas ações de segurança realizadas nas áreas de fronteira do país. A PF guarda certa semelhança com a estrutura das Policias Civis estaduais, somente tendo certa “independência” funcional, o que tem possibilitado obter relevantes resultados nos trabalhos realizados, principalmente nos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. A instituição ainda conta com moderno serviço de perícia criminal realizado pela Diretoria Técnico-Científica. À Diretoria de Inteligência Policial cabe subsidiar as atividades de polícia judiciária com informações e conhecimento coletado sobre situações criminais. Já as rodovias federais são fiscalizadas pela Policia Rodoviária Federal, com estrutura funcional especialmente destinada à sua atribuição. Não se confunde com as policias militares rodoviárias estaduais, que cuidam de rodovias estaduais nos seus respectivos territórios. Na esfera federal a Carta Magna também faz menção a Policia Ferroviária Federal, que cuida das ferrovias federais, se efetivamente existissem. Assim, o cidadão cliente de banco federal que tenha sido vítima de algum crime envolvendo sua conta, deveria procurar uma delegacia da polícia federal para registrar a ocorrência.Porém, isso quase nunca acontece, pois que esse cidadão lesado vai até uma delegacia de polícia estadual, onde é feito o registro do seu caso através de RDO, o qual posteriormente é encaminhado a unidades da polícia federal. Explicar essa burocracia a vítima é difícil, sendo mais fácil registrar e encaminhar, gerando toda essa complexidade de tramitação de documento.

Prosseguindo na regulamentação do art. 144 da CF, nos Estados e no Distrito Federal, atuam as policias civis e militares. Às Polícias Civis, cabe realizar atividades de polícia judiciária, ou seja, investigar e apurar infrações criminosas, identificando autoria, materialidade delitiva, as circunstâncias do crime, enfim, fazer uma investigação completa sobre o fato, enviando posteriormente ao Poder Judiciário, através do Inquérito Policial – IP. Todo esse trabalho começa pelo registro do acontecido, através do Registro Digital de Ocorrência – RDO, ainda hoje chamado de BO, o antigo Boletim de Ocorrência ou através do TCO, caso seja considerado crime de menor potencial ofensivo. Os dados desses registros direcionam o rumo da investigação e obtenção de provas sobre o crime em questão, que pode se transformar em Inquérito Policial, onde tudo é juntado. Se for caso de TCO, após lavradas as peças, essas são encaminhadas ao juízo competente, com certa celeridade, não havendo necessidade de instaurar inquérito policial. Caso seja registrado RDO, finalizado o IP, este é encaminhado ao juiz, que por sua vez encaminha ao promotor, que analisa os dados ali constantes, oferecendo denúncia contra o criminoso, ou não. Se oferece denúncia, IP se transforma em Processo Criminal, que só finaliza com uma sentença judicial. Se não oferece denúncia, pode haver o arquivamento ou requisição de novas diligencias à polícia, enfim, uma burocracia apurativa de infração que trava a qualidade da prestação jurisdicional e isso também é complexo para explicar a vítima que busca justiça. A Policia Civil não tem competência funcional para investigar crimes militares, exceto nos casos de homicídios dolosos praticados por policial militar contra civil, que passou a ser considerado crime comum, conforme Lei nº 9.299/96, alterando o Código Penal Militar. A atuação policial civil é mais voltada à repressão do crime, pois que as investigações mormente ocorrem após o fato criminoso, mas também devem acontecer de forma a evitar que ocorram, ou seja, atuar na sua prevenção. A Polícia Civil é subordinada ao Secretário Estadual de Segurança Pública e ao Governador.

Às Policias Militares estaduais cabe atuar na prevenção do crime, através do policiamento ostensivo de forma a preservar a ordem pública. Essa ostensividade deveria inibir eventuais condutas para a prática de crimes, o que tornaria desnecessário o trabalho de polícia judiciária. A hipótese parece simples, mas na prática só demonstra complexidade mórbida. Respeitando correntes doutrinárias e filosóficas contrárias, o crime é inerente à conduta humana. Onde há ser humano sempre haverá a possibilidade de ocorrência de crimes. Assim, por mais ostensividade do trabalho policial militar, sempre haverá necessidade de repressão legal dessas condutas criminosas. A PM atua em várias áreas de interesse, como trânsito, ambiental, desportiva, etc. Está presente na maioria dos municípios, ainda que não haja delegacia de polícia civil. As PMs não são diretamente fiscalizadas nas suas atividades de polícia, pelo Ministério Público ou Poder Judiciário, como o são as Policias Civis, quando das correições normais ou extraordinárias. Não tem competência funcional para o registro do RDO nem do TCO, não podendo instaurar inquérito policial, conforme Lei nº 12.830/13, porém há de se reconhecer que poderia ajudar a desafogar o trabalho da polícia civil. O número de oficias policiais militares é superior ao número de delegados de polícia e esses poderiam auxiliar nas atividades de polícia judiciária, lavrando o TCO ou RDO. Atualmente prevalece entendimento da Suprema Corte ser inconstitucional essa possibilidade (RE 702617 AM). A CF ainda trata dos Corpos de Bombeiros Militares, integrantes da Policia Militar dos Estados, com atuação mais voltada as atividades de defesa civil.

Ainda no art. 144, parágrafo 8º, a Constituição trata sobre as Guardas Municipais. Dispõe que é facultado aos municípios a sua criação para proteção de seus bens, serviços e instalações. Nessa situação, quando da elaboração do projeto constitucional em 1988, não se avançou na criação de uma polícia municipal, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos. Vários fatores influenciaram essa postura, desde lóbis corporativistas até desconhecimento da realidade de insegurança em ascensão no país. Como é faculdade do município, criar ou não Guardas Municipais, surge certo receio nessa empreitada, pois que requer altos investimentos, surgem responsabilidades na área da segurança, cenário jurídico confuso quanto a competência e atribuições, cobrança direta da população por resultados, entre outras demandas. Dessa forma, não são todos os municípios que se propõem a criar sua Guarda Municipal. Por outro, a maioria dos municípios que tem essas Instituições, apresenta diferenciação positiva de cenáriona área de segurança pública, pois que o trabalho realizado por esses agentes de segurança se destaca junto à comunidade local. É comum em alguns municípios ser o efetivo das Guardas superior ao da Policia Militar ou da Polícia Civil. Ainda que na vigência do Estatuto Geral das Guardas Municipais, através da Lei nº 13.022/14, predomina certa “confusão” se essas instituições têm ou não poder de polícia de segurança pública para atuar como atuam as policias estaduais. Mesmo sendo negativa a resposta para essa questão, o cidadão que foi atingido por ato criminoso quer ser atendido de imediato e da melhor forma, não se importando se quem o ajuda é agente de segurança municipal, estadual ou mesmo federal. Nesse ponto reside a complexidade da situação. Atualmente, um grande número de Guardas Municipais existentes no país, estão aptas a atuar na segurança pública do município, como se fossem polícias municipais, só precisam de efetiva regulamentação para tanto, a começar pela Constituição Federal. Se funciona nos Estados Unidos, também deve funcionar por nossas terras brasileiras, basta vontade política e coragem dos governantes para implantar mudanças.


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Por fim, as instituições de segurança pública, ainda que precariamente, estão funcionando no país, mas podem melhorar e muito, para o atendimento daquele que foi atingido pela violência ou criminalidade. A vítima do crime não pode ser vítima duas vezes, do bandido e do Estado. O modelo deve ser repensado na sua base para que surta reflexos positivos na estrutura de segurança pública, como um todo. A adoção de medidas paliativas e esporádicas, conforme o governante que está à frente do país, do estado ou do município, não é solução perene para os males da insegurança que aflige a população brasileira.

 

FUNCIONAJOSÉ ROBERTO FERRAZ

Ex-comandante da Guarda Municipal de Jundiaí; delegado aposentado da Polícia Civil; especialista e professor de Direito Ambiental.