Unidades de Conservação: que SAUDADES do Rei Dom Felipe III

No Brasil Colônia, por volta de 1605, ainda na vigência das Capitanias Hereditárias, havia uma lei de nome “Regimento do Pau-Brasil”, criado pelo rei Dom Felipe III, que trazia rígidas regras de natureza ambiental, estabelecendo formas de exploração daquele tipo de madeira, visto que o processo até então empregado estava causando prejuízos à Coroa. Também naquela época era intenso o contrabando do pau-brasil e outras madeiras nobres para a Europa. Aquele que não acatasse o mandamento da norma, ainda que a mata estivesse dentro dos seus domínios de proprietário, poderia sofrer de forma gradual e progressiva, pena de multa, chibatadas, degredo, confisco de bens e até a pena de morte. A lei previa ainda que o corte da madeira, devidamente autorizado, deveria ser feito de forma técnica a evitar perdas de material lenhoso, possibilitando a brota da planta, ou seja, primeiras medidas de exploração sustentável. Noutro ponto, o regimento previa a criação de um grupo de guardas, cujos salários seriam proporcionais ao número de atuações realizadas, ou seja, um “incentivo” brutal à eficácia da fiscalização ambiental. Em resumo, o dono da fazenda que cortasse madeira de pau-brasil, mesmo dentro dos seus limites de propriedade, com licença expressa ou escrita do representante da Coroa, ainda assim, ficaria sujeito ao rigor da lei, caso excedesse ao volume permitido na autorização. Com o que vemos hoje, o desrespeito, ao meio ambiente, só resta falar: saudades de Felipe III.

Por outro lado, se explorasse a madeira sem autorização, poderia ser enforcado e seus bens confiscado, ou sujeitos a “confiscação”, conforme constava escrito no Regimento. Naqueles tempos, não se falava em Direitos Humanos e a pena extrapolava a conduta delituosa do agente, refletindo também nos seus familiares. Segundo a história, o governo de Felipe III, teria sido prejudicial para Portugal e para o Brasil e as medidas para evitar a exploração ilegal da madeira tinham mais viés econômico do que de proteção ambiental. Apesar da rigidez da lei imperial, o contrabando do pau-brasil era considerado a maior atividade ilícita da época, indo sua exploração desenfreada vai até o início do Século XIX, quase extinguindo por completo esse tipo de vegetação brasileira. O tráfico de drogas, de armas, de animais silvestres, de órgãos humanos, de mulheres, etc, ainda estavam no estágio hipotético embrionário. Sequer se falava em exploração imobiliária. A marcante proteção destinada às áreas onde se encontravam as matas de pau-brasil, teriam sido as primeiras manifestações do poder público em estabelecer as chamadas Áreas Protegidas, modelo que mais se aproxima da atual denominação de Unidades de Conservação, e revelam ser importantes ferramentas para frear a degradação de áreas que possuam relevantes atributos ou interesses ambientais,que devem ser protegidos. O desatendimento à norma e o desrespeito com o meio ambiente contemporâneo, contrários à necessária proteção das Unidades de Conservação sugere saudades do Rei Dom Felipe, por mais insano que fosse.


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Desde o Regimento do Pau-Brasil, outras normas foram promulgadas no país, voltadas a proteção ambiental. Quanto as Unidades de Conservação, a Constituição Federal de 1988, trouxe no seu art. 225, conjunto de medidas que devem ser atendidas na proteção do meio ambiente, principalmente em relação a obrigatoriedade de se identificar e definir em todo o território brasileiro, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, conforme seus atributos ambientais especiais (água, flora, fauna, solo, etc.). Qualquer alteração nesses espaços deve obedecer ao regramento, ficando constitucionalmente vedada a sua utilização, caso comprometa a proteção dos atributos nela identificados. Regulamentando esse dispositivo constitucional, foi criado em 2000, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, através da Lei nº 9.985/00. No seu art. 2º, inciso I, encontra-se a definição legal do que seja Unidade de Conservação, dispondo tratar-se de espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção. O Brasil conta atualmente com cerca de 1.828 Unidades de Conservação, tanto de Proteção Integral, quanto de Uso Sustentável, legalmente instituídas pela União, pelos Estados e pelos Municípios. As Unidades de Conservação existentes são fiscalizadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade.

No aspecto jurídico penal, a Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, dispõe nos seus artigos 40 e 40 A, pena de reclusão de um a cinco anos, àquele que infringir as regras estabelecidas na lei. Descreve dois tipos de Unidades de Conservação: as que recebem mais proteção, chamadas de Unidades de Proteção Integral, como sendo as Estações Ecológicas, Reservas Biológicas (Exemplo: ReBio Japi), Parques Nacionais, Monumentos Naturais e os Refúgios de Vida Silvestres. A utilização dessas áreas é mais restrita, podendo somente haver pesquisa científica e alguma atividade turística, face a sensibilidade dos bens naturais ali encontrados. Outro tipo são as Unidades de Conservação de Uso Sustentável, identificadas como sendo: Áreas de Proteção Ambiental (Exemplo: Jundiaí, Cabreúva), Áreas de Relevante Interesse Ecológico, Florestas Nacionais, Reservas Extrativistas, Reservas de Fauna, Reservas de Desenvolvimento Sustentável e Reservas Particulares do Patrimônio Natural. Nessas áreas pode ocorrer a sua utilização e transformação, porém devem ser obedecidos critérios da lei que as tenha criado. É certo que a humanidade precisa cada vez mais produzir bens e serviços e que a população aumenta a cada ano, o que pode gerar reflexos negativos à manutenção e qualidade das Áreas Protegidas. A ocupação antrópica e utilização dos recursos nas Unidades de Conservação, deve ser balizada pela lei e contrariar essa disposição pode implicar até em responsabilidade criminal ambiental. Eventuais danos diretos e mesmo indiretos, levam a essa imputação de crime ambiental ao responsável. O que não pode ocorrer é a transformação de áreas antes protegidas em áreas passíveis de utilização generalizada em prejuízo daquelas.

Não se sabe com certeza qual a densidade demográfica do Brasil, enquanto Colônia de Portugal, havendo somente estimativas que a população indígena era em torno de 4 a 5 milhões de pessoas. Atualmente, esse número está por volta de 207 milhões de brasileiros, conforme ultimo senso 2015. Com uma área territorial de mais de 8 milhões de Km2, essa população fica em torno de 25 habitantes por Km2. Conforme última publicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, através da Resolução nº 02 de 21 de junho de 2016, a média estava em 23,4 habitantes por Km2.Haja desmatamento para se criar áreas agropastoris, construir casas, rodovias, escolas, explorar matéria-prima, etc. Segundas últimas notícias divulgadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, o desmatamento no Brasil aumentou em 29%, entre agosto de 2015 à julho de 2016, em comparação com mesmo período anterior. Grande parte desse tipo de crime praticado contra a flora foi registrado atingindo Unidades de Conservação na Região Norte do país. A possibilidade do degradador contumaz se livrar de eventual punição, aumentou a partir da publicação do Novo Código Florestal em 2012, que anulou multas aplicadas até 2008 e praticamente de lá pra cá nenhuma outra Unidade de Conservação foi criada, muito pelo contrário, as que existem estão sendo alvos de interesses escusos na sua utilização. Alegando questões de segurança nacional, recentemente o Conselho Nacional de Segurança posicionou-se contrário a indicação do Parque Nacional da Serra do Divisor, existente na fronteira do estado brasileiro do Acre com o país Peru, para ser considerado como patrimônio natural da humanidade, junto à Organização das Nações Unidas – ONU. Apesar do Parque já ter sido criado em 1989, através do Decreto nº 97.839 de 16 de junho de 1989, sua área continua sendo alvo das mais variadas formas de especulação e atribuir-lhe qualidade de patrimônio natural da humanidade somente reforçaria a proteção que merece. Noutros casos, o governo federal propõe Medidas Provisórias (MP 756 e 758) para limitar áreas já estabelecidas por lei, em Parque Nacional e Floresta Nacional e em Área de Proteção Ambiental na Região Norte do país, insensatez que só não se concretizou em razão de manifestações populares para que fossem vetadas. Mesmo havendo o veto, não inibe outras futuras formas de propostas ou manifestações legislativas interesseiras pela redução dessas áreas protegidas. Nesse contexto, soa de forma irônica proposta de sugestão legislativa da ONG Greenpeace, protocolada em 2015 junto ao Congresso Nacional, para o “Desmatamento Zero” no país.


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O município de Jundiaí tem uma área total de pouco mais de 431 Km2. Cerca de 92 Km² deste total, pertence a Serra do Japi. Todo o município é considerado Unidade de Conservação de Uso Sustentável, na modalidade Área de Proteção Ambiental, conforme Lei Estadual nº 4.095/84, regulamentada pelo Decreto nº 43.284/98. Essas leis somadas às leis ambientais municipais, deveriam servir de base legal para a proteção do meio ambiente no município. A população estimada em 2016, segundo IBGE foi de mais de 405 mil habitantes, o que dá uma média considerada de habitantes por quilometro quadrado. Hoje, por certo, esses números são maiores, visto intensa chegada de novos moradores trazidos pela crescente oferta de imóveis no mercado. Será preciso mais água, mais transporte, mais condições de trânsito, mais saúde, mais segurança. Cerca de 10% da área que compreende a Serra do Japi, compõe a Reserva Biológica, portanto uma Unidade de Conservação de Proteção Integral dentro de Unidade de Conservação de Uso Sustentável. Tal qual na esfera federal, também na municipal surgem pressões para desconsiderar tudo o que a lei prevê em garantias para o meio ambiente e que podem propiciar qualidade de vida as pessoas. Recentemente, divulgou-se na mídia local que representantes do setor imobiliário, tiveram reunião com o governo municipal solicitando mais flexibilidade na aprovação de empreendimentos no município, em razão de alegada rigidez da legislação ambiental para a área. No mesmo sentido, surgem manifestações no sentido de reavaliar rígidos regramentos ditados no Plano Diretor, para facilitar emissões de licenças para construções. É no mínimo preocupante tais pretensões e até então não se registra nenhuma manifestação popular ou postura contrária ao pretendido – mudar a lei para piorar o que já está ruim. A ocupação do solo em direção a Serra do Japi já é realidade.

Séculos atrás, a desculpa dos degradadores para o desmatamento do pau-brasil no país, poderia ter sido de qualquer tipo, como incentivar o crescimento, produzir mais alimento, mais emprego, mais qualidade de vida para as pessoas, justiça social e por aí vai uma infinidade de balelas que na realidade nada mais são do que flagrantes desrespeitos à inteligência das pessoas. Atender preceitos morais, éticos e sobretudo humanos no respeito ao meio ambiente, não podem ser soterrados pela ganância materialista. Ao contrário do que previa o Regimento do pau-brasil, onde o infrator ficava sujeito a multa, açoite, degredo e até ser morto, infelizmente hoje, o degradador ambiental não fica preso, não paga multa, pois se tem interesse pecuniário na questão, tudo se arranja, tudo se compra. Novamente: saudades do Rei Dom Felipe III.

 

SAUDADESJOSÉ ROBERTO FERRAZ

Ex-comandante da Guarda Municipal de Jundiaí; delegado aposentado da Polícia Civil; especialista e professor de Direito Ambiental.