Semente crioula: vida longa para a agricultura e agricultores

É sabido que a partir da semente que se inicia o cultivo dos principais itens de nossa alimentação, como o feijão, o milho. Mas o que vem a ser esse termo, crioula? Ele vem do verbo latino creare, que significa criar: “o que ou quem nasceu, ou foi produzido, nos países colonizados, por oposição ao que é importado de países especialmente europeus”. Quando se refere a sementes, são aquelas que conservam em sua estrutura interna, em seus cromossomos, um vasto repositório de diversidade, constituindo um verdadeiro patrimônio genético produtivo, cultural e humano.

A importância das sementes crioulas já está estabelecida legalmente, desde 2003: a Lei nº 10.711, de 5 de agosto, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Sementes e Mudas, em seu Capítulo I, art. 2º, inciso XVI, a conceitua:

(…) XVI – cultivar local, tradicional ou crioula: variedade desenvolvida, adaptada ou produzida por agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas, com características fenotípicas bem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades e que, a critério do MAPA, considerados também os descritores socioculturais e ambientais, não se caracterizem como substancialmente semelhantes às cultivares comerciais

É necessário explicar a sigla e o porquê da sua importância ali: MAPA é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que atua em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) e a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (Sead). A inclusão dos termos, local, tradicional e especialmente, o “crioula” foi de fundamental na conquista e na afirmação da importância dessa semente.

Constar em lei tirou da informalidade a prática ancestral de sua conservação por gerações de agricultores familiares, em grupos restritos. Abriu-lhes um caminho para ampliar o acesso, de forma ampla e coletiva, às sementes e mudas de qualidade adaptadas ao território, com o intuito de fortalecer sistemas agroalimentares de base agroecológica.

A semente crioula está intimamente ligada aos agricultores de base familiar, e isso não é pouco. Aliás, vamos aos números para podermos ter uma ideia do que estamos tratando?

De acordo com a professora Sonia Maria Bergamasco, da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp, 70% dos produtos de alimentação provenientes do campo, no Brasil, vêm da agricultura familiar. Há mais de 40 anos se debruçando sobre esse universo, afirma: “as pequenas unidades respondem pelo sustento de 4,3 milhões de famílias e representam 84% de todos os estabelecimentos rurais do país. Embora ocupem somente 24% das áreas agriculturáveis, essas propriedades são responsáveis pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros”. A agricultura familiar também responde por 90% da produção de mandioca, 80% da de feijão, 60% da de arroz, entre 50% e 60% da de milho e 15% da de soja.  Sentiu?

Resumidamente, e tentando afastar os termos e os procedimentos técnicos, vamos explicar um pouco sobre a obtenção das sementes crioulas e das industriais.

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Desde que o homem começou a se fixar à terra, deixando de ser nômade, há cerca de 10 a 12 mil anos a.C., passou a cultivar plantas, selecionando as mais adaptadas àquele ou a este tipo de solo, de clima etc. Essas características foram incorporadas à genética dessas sementes. Essa prática é constante entre os agricultores, daí surgindo as diversas variedades, “crioulas”, que mantém em seu interior, pelos seus genes, intactos, a capacidade ímpar de produzir em condições existentes como também naquelas não previstas, no caso de oscilações no clima – temperatura, chuvas-, no solo, entre outros.

Com a finalidade de produção de determinadas plantas em escala industrial, exigiu-se que também seu produto tivesse um padrão. O exemplo clássico é o milho: grandes extensões de áreas cultivadas exigem mecanização, com a padronização da espiga para rendimento de todos os procedimentos de cultivo, da semeadura à colheita. Por um processo de melhoramento genético industrial, produz-se uma semente, chamada F1, que vai resultar em um produto uniforme nas características que o mercado deseja, por exemplo tamanho de espiga, de grãos etc. Até aí, tudo bem. O “porém” está que essa semente, F1, só pode ser plantada uma vez para a obtenção de todas essas características desejáveis. Sementes de suas espigas não as repetem. Se plantadas, colhe-se muito aquém do investido, tornando-se proibitivo. Portanto, para se produzir nessa escala, toda safra há de se comprar sementes, as F1. Não se guarda. Aí é que está a perversidade do sistema: o agricultor se torna dependente da aquisição dessa semente.

O que se coloca aqui é uma questão de opção: se o agricultor optou pelo cultivo industrial, para exportação, ração e outros, e vê vantagens para si, não há o que se opor. O problema é negar a opção para quem não quer se utilizar das sementes F1, que é a base da nossa alimentação, como vimos pelos dados. Negar a opção é restringir o acesso a créditos e a fomentos, discriminar a comunidade que se utiliza ou conserva essas sementes, seja pela sociedade ou até mesmo pelo corpo técnico de órgãos públicos e privados.

No entanto, são nessas sementes que qualquer manipulação genética, para alterar qualquer característica da F1, irá beber. Um estudo realizado no Rio Grande do Sul mostra que entre as principais causas da  preferência  dos  agricultores pelas sementes crioulas, além dos aspectos positivos de sua adaptabilidade e produtividade, são o melhor sabor e qualidade; permitem redução de custos pela menor dependência de insumos químicos e maior adequação ao manejo ecológico, como uso de adubos verdes, pós de rocha, composto orgânico e inoculantes para fixação biológica de nitrogênio.

Portanto, o pequeno agricultor que mantém sua própria semente não depende de mercados nem fica sujeito àquilo que é ofertado ou doado por programas governamentais, que pode ser de baixa adaptação ou não atender a suas demandas, correndo ainda o risco de chegar fora do momento adequado de plantio.

E a resistência dos agricultores familiares vai além, chegando ao vínculo afetivo com a semente, que é tão pequena e, por muitos, tão insignificante, mas traz o universo dentro de si: na Paraíba, são chamadas das sementes da paixão; no Ceará, sementes da vida; no Piauí, sementes da fartura; em Alagoas, são as sementes da resistência e em Sergipe, sementes da liberdade. E nos dão mais um presente: um lindo colorido que expressa essa poesia!


ELIANA CORRÊA AGUIRRE DE MATTOS

Engenheira agrônoma e advogada, com mestrado e doutorado na área de análise ambiental e dinâmica territorial (IG – UNICAMP). Atuou na coordenação de curso superior de Gestão Ambiental, consultoria e certificação em Sistemas de Gestão da qualidade, ambiental e em normas de produção orgânica agrícola.

 

Créditos

Foto principal: farm5.staticflickr.com

Colheita: crédito foto.

Espigas de milho: www.mda.gov.br