Recentemente fui a um jantar, aqui em Jundiaí, a convite de alguns amigos que me garantiram uma noite de muita risada e com pessoas bem descoladas e atuantes. Disseram-me: pessoas cabeças (tenho um medo quando ouço isso: imaginem pessoas sem cabeça, como seriam?). Conversaríamos de alguns planos de politicas públicas educacionais e, apesar de minha distância desta minha cidade, tenho interesse no assunto e quero participar com aquilo que tenho noção e sei fazer.

No entanto, lá pelo meio do jantar, surge um colega que nos cumprimenta em alto e bom som: “Boa noite a todos e a todas”. Ouvi murmúrios e sons sendo articulados, mas assustei-me com a saudação, em especial porque pensava em pessoas descoladas e atuantes, portanto: pessoas contextualizadas, pessoas-cabeças.

Com o avançar das conversas ficou nítido que parte do grupo tinha um “código de expressão” engajado e forte, rebatedor de toda e qualquer expressão que não compusesse com a linguagem daquele segmento, o que foi silenciando, pouco a pouco, a fala dos presentes e concentrando a vocalização no pessoal do patrulhamento.

Fechei-me e pus-me a observar os comportamentos, como um digno pesquisador de comportamentos humanos, mas confesso que o ambiente me acorrentava. Aquele silêncio a que eu me impunha estava me incomodando, posso dizer que sentia algo muito próximo ao acovardamento e medo de exposição. Não sou hábil na linguagem “politicamentecorretês” e não tenho traquejo para tanta sensatez diante do não-contextual.

Explico tal impropriedade minha: sou adepto de Goffmann e Luckmann e Berger e Adorno. Sou amante do contextual. Sou atento aos ensinamentos oriundos do “Estigma”, do “Comportamento em lugares públicos”, do “Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face”, bem como “A construção social da realidade” e a “dialética do esclarecimento” escritos por cada um deles e isso sempre me direcionou, no contexto que estiver, no momento que estiver. Minha vida acadêmica foi, é e será pautada por estes ensinamentos e reflexões, que são claros, assertivos e elucidativos, cada um a sua maneira.

Desta forma, entendo que o politicamente correto não deva me oprimir, nem deva me patrulhar, pois estaria fazendo um papel castrador e limitador de minhas inserções sociais, de maneira indevida. Penso: aprendi que, em um grupamento com 10 mulheres e um homem a concordância nominal se faz no masculino, sem arranhar regras sociais ou culturais ou contextuais. Caso eu tenha tido bons professores de Língua Portuguesa (e eu tive: Paulo Bevilaqua, Paulo Vieira, Beni Marchi, Jesabel Camargo, Ana Maria Costa) eram eles errados? Ensinaram-me a mim e aos meus colegas inadequações linguísticas e gramaticais?

De repente, no meio do tal jantar, totalmente ausente das discussões e ensimesmado, pego-me pensando naquilo que trouxe discussão e debates acalorados, no Brasil que, graças ao boníssimo Deus, é um país que não tem problemas nem nada de mais importante para parar e debater: a faxina politicamente correta que seria feita pelos blocos carnavalescos, diante de músicas que compõem o folclórico nacional.

Fui fundo nessa reflexão, ainda que balançasse a cabeça, em alguns momentos, com se estivesse participando do diálogo, ao meu lado, que discutia um sei lá o que. Pensei no cabelo da mulata, que não negava; pensei na cabeleira do tal Zezé (até me lembrei de meu amigo Zezé, que era careca). Desculpem-me: destituído de folículos capilares no alto de seu crânio; pensei em Alá; na tão cantada Maria Sapatão; na tal história da maçã que Adão comeu de manhã…

Saí das marchinhas e fui para as ainda folclóricas músicas infantis e me peguei eufórico lembrando que, em casa, tínhamos dois gatos mas cantávamos a mais não poder o infantil “Atirei o pau no gato”, mesmo depois me agregando à Sociedade Protetora dos Animais, sem nunca haver lançado nada contra gato algum, pois apesar de cantar a musiquinha, tinha pais que me educavam para o exercício da cidadania e da convivência sadia.

Fiquei aflito ao meu lembrar do “soldado com cabeça de papel”, da tal Lelê do “Samba Lelê”, que precisava de umas boas palmadas… Na hora pensei no ECA e na possibilidade de retirada dela de seus pais, molestadores de infantes indefesos. Em minha atual formação, como graduando de um curso de Psicologia, vi-me forçado a pensar no “Boi da cara preta que vem pegar menino que tem medo de careta”; imaginei o pecado cometido ao dizer que o boi tem cara preta (preconceituosamente….affff).

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Passei a visitar meu imaginário, ainda, e localizei a coitada da criança que é obrigada a dormir, senão a Cuca vem pegá-la….e por aí vamos recordando (e policiando) nossas recordações politicamente incorretas. Lembrei-me, até, da melosa Ciranda, cirandinha, cujo anel era de vidro e se quebrou, levando junto a esperança do amor, que era pouco e se acabou… Doce sonho, feliz infância e descontextualizada opressão.

Em meus retornos ao ambiente e na tentativa de completar meu jantar que esfriara no prato, passei a pensar naquilo que via, no que sabia e estava por vir: cantar estas marchinhas não pode, porque são ofensivas à “mulata” por remeter a mula ou porque expressa algo contra uma raça, mas cheirar cocaína no bloco pode? Beber até entrar em coma alcoólico pode? Sair de casa para uma reunião de negócios que termina no happy hour do motel, com a secretária pode?

Será que discutir peças folclóricas não nos obriga a pensar na época de suas criações e propor aos atuais interlocutores que informem, ensinem, expliquem aos jovens contemporâneos quem foi o criador daquela musica, qualera aquele contexto, com que finalidade se usou esta ou aquela expressão. Isso não nos parece mais lógico e educativo do que limitar a dizer: politicamente incorreta!

Ao rotularmos algo, sem a devida explicação, estamos oprimindo, negando o direito de saber, pensem comigo…coitadas de nossas crianças, que ao ouvirem a cantiga: “dorme nenê, que a cuca vem pegar, o papai foi a roça e a mamãe ao cafezá” irão se assustar e se perguntar: que porra de cuca é essa? Quem é esse tal de papai e que diabo é essa roça? Esta linguagem, no século XXI, não faz sentido a não ser o folclórico; é a cantiga de um tempo que um dia já vivemos. Já não o temos mais.

Mas explicar aquele tempo demanda muito: é preciso saber diferenciar o hoje do ontem e do amanhã. E isso é tarefa difícil para os imediatistas de plantão. Quantos de nós não temos tempo para educar nossos filhos e os entregamos a serviços de terceiros, na esperança de uma boa educação? Esses são os nossos tempos, chamados de “hard times” pelos filósofos contemporâneos, com toda razão.

E, logicamente, você deve estar se perguntando: e o jantar, como seguiu? Seguiu chato, porque me cansei do silêncio e comecei a dizer para quem estava ali, qual era minha opinião e como eu me portava diante de situações inusitadas como aquelas, porque aquilo era de uma esquisitice a toda prova. De imediato passei a ser o pato listrado numa lagoa de patos branquíssimos.

Nessa quinta-feira, dia dois de março de 2017, acredito que minha primeira pergunta, em resposta à pergunta que me fora dirigida (quem é você?) tenha causado um tsunami no restaurante. Minha humilde e simples questão foi: um jantar para discutir política pública educacional com exclusividade para membros da bancada sexista masculina. Isso não soa estranho?

Mas, no âmbito do politicamente correto, ainda ouviria muitas provocações, que me possibilitaram retornar aos questionamentos e outras que me conduziram às maiores reflexões e silêncios, para não vibrar na mesma sintonia. Os politicamente corretos são truculentos. Ameaçadores. Falam em nome de seu clã. Fizeram-me lembrar de grandes e vestutas agremiações seculares, detentoras de saber e poder (mais poder do que saber, convenhamos), as quais não perderei tempo nomeando, justamente por estarem falidas e descontextualizadas.

E, seguindo no jantar, que já estava com um público reduzido e sentado mais próximo, o calor dos debates somente crescia e eu me pegava pensando: como vou sair daqui? Que horas ou como vou cair fora desta coisa grudenta? Porque ser politicamente correto é grudento. É chato. É violador da liberdade alheia. O consensual é que se possibilite existir com integridade e responsabilidade, possibilitando compreender e se fazer compreendido, diante da imensa gama de diversidades existentes.

Este princípio está impregnado de um realismo contemporâneo que derruba paredes e avança fronteiras. Cresce com força e sabedoria e não se prende a modismos quaisquer, porque os movimentos sociais são mais que isto: são exata e precisamente aquilo que são. Sem esta de movimento de pobres e dos remediados e dos ricos. Temos movimento do cidadão. Sem esta de movimento hetero, homo, bi, LGBT. Temos movimento de homens. O resto é o politicamente correto.

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E, quase uma hora da madrugada, os 14 restantes se levantam de seus lugares e se dirigem aos seus carros, com a promessa de rever a fala e repensar nas futuras ações. Ouvi claramente que todos trariam acompanhantes, sem preocupação com horário e tema de debates. Mas que ainda falaríamos do politicamente correto.

Novamente, eu comigo, dirigindo-me para casa, peguei-me refletindo: falar, falaremos, mas o ideal é que estivessemos impregnados de saber, para não falarmos mas agirmos politicamente adequados. Não sei se é correto. É aquilo que contextualmente temos para nossa contemporaneidade. Minha impertinência me traz insônias que favorecem meus princípios: não se conhece nem se transforma o hoje, sem profundo conhecimento do passado e sem extrema cautela com os avanços para o futuro. (foto acima: www.osprofanos.com)

AFONSO 2AFONSO ANTONIO MACHADO

É docente e coordenador do PPG- Desenvolvimento Humano e Tecnologias da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia.