Há vivências de trocas que me surpreendem.
Conheci o moço em uma das calçadas cinzentas da cidade. Posiciona-se na sarjeta para pedir uma ajuda. Circula de uma esquina à posterior e vice-versa, vestido de misérias. Basta observar suas roupas, o cabelo embaraçado, a barba por fazer e o limite físico que carrega. Transborda carências. Deve ter uns 28 anos. Creio que o valor que pede seja para o uso de alucinógenos. Na região há comércio ininterrupto de drogas. Os moradores de rua se misturam aos carros do ano, às bicicletas às motos.
Esse moço possui sorriso e olhar dolorido que me comovem. Não é um canalha, mas um doente. O tom verde de seus olhos se destaca no rosto encardido e maltratado.
Um dia desses, perguntou se meus olhos eram da mesma cor que dos dele. Respondi: “Assim fossem!” Retrucou: “Então vamos trocar de olhos”.
Considerei interessante a colocação. Se houvesse a possibilidade, iriam, com minhas retinas, as imagens e paisagens que carrego desde a infância. Há nelas as pessoas que amo – algumas já partiram, mas permanecem na saudade -, há encantos, abraços, beijos, montanhas, auroras, poentes, rochas, rios, oceano, flores, árvores, aves, borboletas, “pessoinhas” de pelo… Há mestres que muito me ensinaram, há lousas e desafios, há percursos sem atalhos, há atalhos dos quais fui protegida… Há igrejas e mosteiros que me chamam para clarear a alma. Há Cruz banhada de sangue e ressurreição que me indica o Céu. Sem dúvida, existem também os meus vazios, os meus temores e as minhas oscilações que trato com a fé, as preces e a esperança das vivências que trago comigo. Meu Senhor é inacreditável, é Aquele da resposta do Anjo Gabriel a Maria: “…pois para Deus nada é impossível” (Lucas 1, 37).
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E a retina dele, que cenários e laços trariam? Em que ponto de seu caminho um pé inflamou e o outro fraquejou? De onde vem para não buscar retorno?
Propor a troca inconcebível de tom dos olhos, com ar de brincadeira, foi afeto dele, que eu retribuo pedindo a Deus que o liberte e cure. (Foto: Youtube)
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE
Com formação em Letras, professora, escreve crônicas, há 40 anos, em diversos meios de comunicação de Jundiaí e, também, em Portugal. Atua junto a populações em situação de vulnerabilidade social. Acesse o Facebook