Normalmente sou uma pessoa bem humorada, cordata, simpática e otimista, mas todas essas qualidades viram fumaça se estiver com fome. E com sono (assunto que trataremos em outra oportunidade). Não lido bem com a privação alimentar, o jejum, embora entenda ser benéfica em algumas situações muito específicas (por exemplo: restrição alimentar em crianças portadoras de epilepsia apresentaram menos episódios da doença), apesar de não concordar plenamente sobre seus possíveis efeitos na perda de peso corporal e de já ter visto matérias em que pesquisadores e profissionais da área de Nutrição a recomenda para esse fim.

O jejum caracteriza-se como abstenção de comida, redução à uma única refeição diária, alternância entre períodos de alimentação seguidos de longos períodos de ausência de alimentos e por aí vai. Existem inúmeras propostas de períodos de jejum.

Na religião, o jejum é uma prática comum para reabastecer-se de forças para enfrentar as batalhas diárias e não possui regras específicas. Pode-se jejuar de qualquer tipo de alimento ou de algum alimento específico, bem como pode ser de palavras ou de atos.

No novo testamento Jesus recomenda o jejum para expulsão de demônios. De verdade? Em jejum alimentar eu viro o próprio demônio.

Vamos aos fatos fisiológicos.

A evolução nos permitiu andar ereto para facilitar o manuseio de ferramentas principalmente porque nossa alimentação teve que mudar. Passamos de vegetarianos a carnívoros, portanto caçadores, em função da enorme demanda de energia que nosso cérebro superior exigia para se manter em funcionamento.

Cerca de 85 a 90% de toda a glicose ingerida (em suas diferentes formas) é destinada para a manutenção das atividades do Sistema Nervoso Central (SNC). O resto do corpo tem que se contentar com os 10% restantes, mas como os outros tipos de células não são tão exigentes quanto os neurônios, elas utilizam como fonte de energia ácidos graxos livres, corpos cetônicos e em situações de restrição extrema, podem utilizar até aminoácidos.

Para suprir essa alta demanda, o organismo humano desenvolveu formas elaboradas e redundantes para manutenção da glicemia numa faixa restrita: entre 60 e 140 mg/dl de plasma, estando em jejum ou no estado alimentado.

Essas formas de manutenção da glicemia, nada mais são que processos bioquímicos perfeitamente cadenciados e ligados entre si que mantém a glicemia em concentração suficiente para a função neural normal, pois baixas concentrações prejudicam o funcionamento do SNC ao mesmo tempo em que elevada glicemia excede o limiar de excreção renal levando às complicações pertinentes ao Diabetes mellitus mal controlado (retinopatia, nefropatia e neuropatia).

O período de tempo considerado como jejum fisiológico é controverso, mas pode ser determinado a partir do momento que a glicemia começa a cair após uma refeição. Portanto, esse tempo varia grandemente entre os indivíduos. Para estabelecermos um padrão, consideraremos jejum entre três e cinco horas após uma refeição principal (café da manhã, almoço ou janta).

Baseado nesse conhecimento que muitos profissionais sugerem se alimentar de três em três horas e laboratórios recomendam períodos de quatro, nove ou 12 horas para realização de exames específicos.

Então, porque, sendo o jejum uma situação fisiológica, corrigida por processos bioquímicos potentes e eficientes poderia ser uma ferramenta de emagrecimento?

Em primeiro lugar, a perda de peso obedece uma regra matemática simples: calorias ingeridas < calorias gastas. Alguns fatores como metabolismo energético basal também afeta essa conta (por ex.: jovens tem metabolismo basal mais alto que indivíduos mais velhos, homens o tem mais alto que mulheres, pessoas ativas também gastam mais calorias em repouso que sedentárias e assim por diante).

A lógica preconiza que, sendo a digestão um processo que consome muita energia, seria interessante fracionar as calorias diárias necessárias, em várias pequenas refeições, a fim de aumentar o gasto calórico. Isso sim faz enorme sentido. Entenderam o motivo de se alimentar a cada três horas?

O jejum estimula um aumento na ação de vias catabólicas, ou seja, de mobilização de reservas energéticas, assim, a glicose armazenada no fígado (o maior responsável pela manutenção da glicemia em jejum entre 60 e 99 mg/dl) será lançada à corrente sanguínea num processo bioquímico conhecido como gliconeogênese. A lipólise também aumenta no tecido adiposo, disponibilizando os ácidos graxos livres e glicerol que tecidos musculares (coração e músculo esquelético) utilizarão como fonte de energia para poupar a glicose para o SNC.

OUTROS ARTIGOS DE ELAINE FRANCESCONI

VOCÊ GOSTA DE FÉRIAS?

RECICLAGEM ORGÂNICA

BEBER XIXI PODE FAZER ALGUM BEM PARA O ORGANISMO?

O QUE É E QUANDO COMEÇA A VIDA?

MANIA DE TER MANIA

A VERRUGA DA BRUXA

QUIMERA É FICÇÃO CIENTÍFICA?

QUANDO SE DÁ O FINAL DA VIDA?

A REAÇÃO PRIMITIVA DO CORPO À PERDA E AO LUTO

Dessa forma, então, fica claro que se a quantidade de energia ingerida for inferior àquela utilizada, teremos vias catabólicas sendo acionadas, levando à diminuição de reservas, incluindo a gordura armazenada no tecido adiposo.

Um porém: os ácidos graxos liberados desse tecido serão convertidos em corpos cetônicos (por isso o hálito doce em pessoas que fazem jejum prolongado ou diabéticos com baixo controle) que, em vários artigos científicos foi apontado como um importante elemento que atrapalha a ação da insulina, causando, portanto, resistência à esta (um passo adiante e a diabetes se instalará).

E por favor, jejum fisiológico é a mesma coisa que jejum metabólico. Cuidado com o que leem na internet.

Portanto, jejum não necessariamente levará à perda de peso, porque nosso organismo fornecerá a energia necessária para o seu pleno funcionamento, ao mesmo tempo em que poderá atrapalhar rotas bioquímicas perfeitamente estabelecidas. Ele levará ao emagrecimento quando for prolongado, mas o custo, como vimos, não vale o esforço.

Outro fato importante, com o prolongamento do jejum a concentração do hormônio que regula a fome, a leptina, cai. Resultado? Aquela fome de comer as panelas, sem controle, como efeito rebote. Além disso, essa queda afeta profundamente o eixo hipotálamo-hipófise-gonadal, reduzindo a oscilação do Hormônio Luteinizante e do Folículo Estimulante podendo levar à suspensão da ovulação.

Traduzindo: em tempos de escassez e fome (é isso o que organismo entende com o jejum), esse mecanismo protege as mulheres em idade fértil de uma demanda nutricional maior, associada à gestação.

Alguns estudos nos EUA mostraram melhora no perfil sanguíneo de lipídeos e glicose em jejum de no máximo 24 horas (totalmente esperado), mas mesmo os pesquisadores concluíram que ainda é cedo para incluir a “dieta do jejum” como opção.

A briga fica feia quando o Nobel de medicina de 2016, Yoshinori Ohsumi, afirma que o jejum aumenta a longevidade das pessoas. Falar isso para os seres humanos é a mesma coisa que dar o endereço do pote de ouro ao final do arco íris, da fonte da juventude ou da ponte dos desejos. Existem? Improvável.

Uma ilusão a que muitos se apoiam é o de viver eternamente. E não faltam pessoas para propagar isso.

Veja bem, é CLARO que não vou falar mal de um Nobel de medicina, mas quero discutir a sua proposta a partir do que sabemos hoje. A ideia é que o jejum aumenta um processo fisiológico (que pode tornar-se patológico) chamado “autofagia”, que significa literalmente “se comer”. Como mecanismo de proteção e de renovação celular, é bem útil, mas as células “autocomidas”, durante o jejum, não são apenas as doentes ou com defeitos. Como direcionar esse processo para grupos de células doentes?

Não sei. Ele também não sabe. A ideia é boa, mas está longe de ser uma forma de viver mais. Pelo menos por agora.

O que se sabe e existem inúmeros artigos científicos comprovando é que o jejum é um perigo para a saúde.

Do Grecco (Grupo de Estudos, Assistência e Pesquisa em Comer Compulsivo e Obesidade, do HC), vem o alerta: “Jejum é um perigo. Quase todos os pacientes que têm um distúrbio alimentar, como anorexia e bulimia, têm um histórico de dieta inadequada e, na maioria das vezes, o hábito de jejuar”.

Dietas restritivas demais também não funcionam, por que são enfadonhas, cansativas, e em algum momento o corpo exigirá uma dieta mais criativa e se não mudamos o hábito de fazer más escolhas à mesa, o peso retornará ao patamar anterior, trazendo muita frustração e desânimo.

Não adianta procurar a dieta milagrosa dos homens das cavernas. Não vivemos mais em cavernas. Não temos mais aquele clima e tipo de alimentos. Não caçamos para comer. Não precisamos ficar dias sem nos alimentar. É só ligar para um disque alguma coisa que a comida surgirá à nossa porta.

Com isso mantenho a máxima para tudo e qualquer coisa na vida: o caminho do meio é o melhor. Buscar o equilíbrio é saudável e duradouro. Precisamos encontrar o equilíbrio no hoje e agora.


ELAINE FRANCESCONI

Bacharel em Zootecnia (UNESP Botucatu). Licenciatura em Biologia (Claretiano Campinas). Mestrado (USP Piracicaba) e doutorado (UNICAMP Campinas) em Fisiologia Humana. Professora Universitária e escritora.