Certa vez um editor apresentou o seguinte veredito sobre um livro que eu havia apresentado: é um ótimo livro, mas trata-se de uma história datada. Aquilo caiu como um pesado martelo na minha cabeça. Afinal, o que são histórias datadas?

Como podemos imaginar, trata-se de uma história excessivamente presa ao período em que ela foi escrita. O livro em questão era justamente o meu trabalho de conclusão do curso de Jornalismo. Um livro reportagem sobre pessoas que viviam nas ruas de uma grande cidade. Para o trabalho entrevistamos e contextualizamos a vida de meninos de rua, mendigos e vendedores ambulantes. Pessoas que faziam da rua seu local de trabalho e moradia. Fosse por opção ou por total falta de opção.

O inconveniente, segundo o editor, é que as entrevistas estavam presas ao registro da época: Campinas, meados da década de 90. Em grande parte, a avaliação do editor levou ao arquivamento do projeto e o livro não foi publicado. Agora, mais de 20 anos depois, eu consigo perceber o quanto aquele tema ainda é atual e o quanto me arrependo de não ter levado aquele trabalho adiante.

 

O motivo de resgatar esse tema está justamente no fato de outra história datada ter caído em minhas mãos exatamente neste momento. Desta vez, ao contrário do meu livro, que acabou indo para a gaveta, este foi publicado. Também é um livro reportagem, mais precisamente, um diário de viagem. E não existe nada mais datado do que um diário de viagem, afinal.

 Senhora Dona do Baile é um livro de Zélia Gattai, publicado originalmente em 1984. Eu comprei esse livro quase na mesma época, através do fabuloso Clube do Livro, talvez um dos melhores sistemas de incentivo à literatura que o Brasil já conheceu. E, sim, é um livro datado, porém, com grande lastro atemporal, sedimentado no delicado e apurado trabalho de repórter que a esposa do escritor Jorge Amado executou.

Zélia Gattai nos conta com delicadeza e apuro nos detalhes, o período em que Jorge Amado passou exilado na Europa, depois de ter seu mandato de deputado federal cassado. Bem, para os que cochilaram durante essa aula de história, uma confirmação: o escritor Jorge Amado foi eleito deputado constituinte pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1945, depois de um breve período de distensão política no Brasil, após o fim da ditadura de Getúlio Vargas, o que não durou muito. Em 1947, o PCB voltou a ser ilegal e Jorge Amado se exilou na França.

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É justamente esse período do exílio que Zélia Gattai registra em seu livro, começando pela sua viagem de navio para a Europa, com passagens por Portugal e Itália, antes de se encontrar com Jorge Amado, que havia fugido do país às pressas, na França. Ela fez a viagem com seu primeiro filho, João Jorge, no colo. E a segunda filha, Paloma, nasceria em Praga, alguns anos mais tarde, ainda durante o exílio do casal.

O livro é, acima de tudo, uma delicada reportagem desenhada pela esposa do escritor, ela mesma uma exímia observadora, que traça um magnífico panorama da Europa após a Segunda Guerra. O livro também abarca a turnê de Jorge Amado pelos países da cortina de ferro. Militante comunista ferrenho, Jorge Amado tornou-se um autor popular e idolatrado entre os países comunistas. Expulso da França em 1950, o autor seguiu seu exílio em Praga, na então Tchecoslováquia e de lá partiu em uma viagem que incluiu as inexpugnáveis URSS e China.

E é neste ponto que o livro alcança sua atemporalidade. Por trás da cortina de ferro, nos recônditos insondáveis do comunismo, Zélia Gattai narra uma epopeia cotidiana, com direito a visitas a grandes lojas populares em Moscou, onde Jorge Amado comprou um indefectível casaco de peles apelidado de Encouraçado Potenkim.

Se tivesse limitado seu trabalho apenas aos aspectos formais da viagem, o que por si já representaria um trabalho magnífico, o livro teria se perdido no registro da época. Ficaria preso ao passado. Ao incluir as pequenas experiências do dia a dia e se permitir o direito de questionar suas próprias crenças, Zélia revela um lado absolutamente raro de uma época ainda hoje cheia de mistérios para quem não viveu o socialismo por dentro. É esta dimensão que rompe a datação e torna sua reportagem um registro extremamente atual. E necessário. Ainda mais numa época em que tentam vender a fantasia de algo que não experimentamos. (foto acima: jorgelealamado.blogspot.com.br)

 

DATADASRONALDO TRENTINI

Jornalista e escritor. Com passagens pelo Jornal de Jundiaí, Jornal da Cidade, Jornal O Tempo e A Tribuna de Jundiaí. Foi secretário de Comunicação na Prefeitura de Jundiaí. Escritor independente, é autor da série Mistério & Sombra, disponível na Amazon.com.br, entre outros livros.