As histórias a seguir são verídicas. Elas são um retrato do preconceito, humilhação e negligência que afligem milhares de pessoas. Eu juro que vi e juro também que ouvi tudo que será narrado. História número 1: Ela era uma menina doce, meiga. Estudava, trabalhava e tinha suas atividades em sua casa e junto aos amigos. Negra, deixou o cabelo tomar formato que compusesse seu visual afrodescendente e mantinha-o sempre exuberante. Era sua marca. Ninguém nunca questionou ou cobrou nenhuma posição em função de sua aparência, mas ela fazia questão de estar sempre bem vestida e etnicamente bela.

Certo dia, ao sair da faculdade, ouviu um grito, solitário e amedrontador. Apurou os ouvidos e, em breve foi alertada pela segunda vez: Nega do cabelo duro! Esse foi o grito. Essa foi a senha. Esse foi o ataque. Atentou-se, procurou-se, mas a sordidez e a covardia sempre andam juntas. Ninguém ouviu ou viu. Nem foi nada. Parece que aquele momento não acontecera.

Ela, altiva, continuou seu caminho, mas em seguida, foi novamente alvo de uma volumosa gritaria, onde os desdobramentos eram mais sérios e mais violentos: negra, fedida, cabelo duro, senzala, macaca…Ninguém ouviu ou viu. Nem foi nada. Parece que aquele momento não acontecera.

E ela, ainda altiva, continuou seu rumo, firmemente postada, cabeça em pé, dilacerada, esmagada, violentada. Mas ninguém viu.

História número 2: Ele era um atleta, corpo forte, esguio e musculoso, alegre, comunicativo. Sempre sorrindo, sempre falando, gesticulando, mãos e boca agindo em coordenação completa. Sempre rodeado de amigos, sempre no centro das atenções. Ao entrar no Ginásio de Esportes, passou um carro pela rua lateral e disparou: veado….cria vergonha…..vira homem…

Ele congelou. Seus amigos ficaram perplexos. O silêncio tomou conta da rua, do espaço, do bairro, da cidade. Quem foi? Quem era? Como assim? Por que isso? E as respostas não chegavam e se chegassem não seriam convincentes.

E ele, sempre altivo, continuou seu rumo, firmemente postado, cabeça em pé, dilacerado, esmagado, violentado. Mas ninguém viu.

OUTROS ARTIGOS DO PROFESSOR AFONSO MACHADO

COMEÇARIA TUDO OUTRA VEZ

AFINAL, ONDE TERMINA O CAOS E ONDE COMEÇA A ORDEM?

SÁBIAS E IMPERTINENTES CONTRADIÇÕES

O INSTAGRAM E A TRANSFORMAÇÃO DA COMUNICAÇÃO EM TEMPO REAL

O ESPORTE, OS ATLETAS, OS TREINADORES E O ASSÉDIO SEXUAL

UMA FORMA DE PRECONCEITO: A INVISIBILIDADE

AH, ESSA COISA DO POLITICAMENTE CORRETO

História número 3: Final da feira do bairro. Ele sentou-se enquanto os últimos caminhões abandonavam as ruas. Iniciava-se a limpeza pública das vias. Poucas pessoas, a não ser alguns feirantes que guardavam seus pertences, poucas pessoas no local. Ele pega seu lanche, que havia ganhado, no decorrer do tempo em que cuidou dos carros de pessoas que vinham à feira. Frequentemente. Encostou-se embaixo de uma árvore e iniciou seu ritual de almoço.

Dois jovens, de moto, passam pela rua e observam o rapaz a fazer seu lanche. Dão a volta no quarteirão, passam mais devagar e disparam: Zé ninguém…por que não morre? Vai pro mato, pobreza. Some, seu merda.

Os feirantes, ainda por perto, presenciam o fato, calam-se, testemunham sem testemunhar. Assumem sem assumir. Compartilham sem compartilhar. E ele, calado, continuou sua vida, sofregamente postado, cabeça baixa, dilacerada, esmagada, violentada. Mas ninguém viu. Ninguém ouviu. Ninguém faz nada

História número 4: Ela correu ao encontro do ônibus que saia. Subiu no degrau da porta e manteve-se por um tempo, até conseguir se equilibrar e sentar. Mas tempo suficiente para ouvir os insultos que bradavam da rua: Sapatão….maria-homem….safada….mulher macho….sabe do que você precisa?….

Dentro do ônibus apenas todo mundo ouvia e via. Numa perspectiva facilitadora de identificar os agressores e tomar as providencias cabíveis. Ela, inerte, congelada, sem ação, manteve a cabeça baixa e desceu pontos à frente, sem olhar para ninguém que dividia espaço com ela, no interior do ônibus.

Desceu como se desce num terreno lunar, sem identificação, nem a pessoal. Ultrajada, já sem altivez nem vontade; cabeça baixa, dilacerada, esmagada, violentada. Desceu o corpo, visto que o pensamento estava longe, esfacelado em algum lugar, sem chances de ser retomado. Mas ninguém viu. Ninguém ouviu. Ninguém faz nada.

História número 5: O senhor estava caminhando pela calçada, sozinho, mas firme, sério, composto. A aproximação do carro esporte com música muita alta não interferiu em seus passos rumo à vida. Ele caminhava bem seguro de si.

O carro aproximou-se lentamente, a janela do lado da calçada se abaixa e de lá de dentro das cavernas explode o insulto: e ai tiozão? Procurando um canto pra morrer? Vai pra casa velhote…lugar de velho é no asilo.

Da calçada, junto com o senhor, estavam outras pessoas mais jovens, alguns bem jovens, mesmo, mas uma maioria adulta, que continuou inalterada, como se nada ocorresse ali, como se nada fosse real. Olhavam o senhor, que se embutiu, recolheu-se em si, e não perguntaram se poderiam ajudá-lo em algo.

O senhor? Bem o senhor continuou seus passos, seu caminho, sofregamente postado, cabeça baixa e dilacerada, esmagada, violentada. Ele estava estraçalhado. Mas ninguém viu. Ninguém ouviu. Ninguém faz nada…

LEIA TAMBÉM:

LEGADOS…LEGADOS…QUE LEGADOS SÃO ESSES? CADÊ ELES?

E ESSA MASCULINIDADE…

 

O ESPORTE TRANSFORMA O HOMEM?

A MÍDIA ESPORTIVA: ENTRE A QUE TEMOS E A QUE QUEREMOS

LEGADOS…LEGADOS…QUE LEGADOS SÃO ESSES? CADÊ ELES?

E ESSA MASCULINIDADE…

Qual a moral da históra? E o final feliz? Até quando os ataques morais estarão impunes e presentes em nossa realidade? Até quando seremos inertes diante dos chacais que nos estraçalham? Por que tememos os doentes que nos humilham e nos tiram pedaços da vida, dia-a-dia? Quem são estes ‘zé-ninguéns’ que nos humilham e não nos dão direito a sermos quem somos?

Por felicidade da humanidade, cada um destes personagens, que existem e são portadores de identidades reais, continuaram seus caminhos, catando os cacos de sua integralidade, aqui e ali, mas continuaram seus caminhos. De repente erguerão suas cabeças. De repente respirarão fundo. De repente tomarão posse de suas identidades e serão gente.

Enquanto isso, os covardes anônimos permanecerão anônimos, atormentando a tudo e a todos, buscando um motivo para serem felizes. E serão, porque até um verme tem direito a ser feliz. (Quadro acima: eneidaconde.blogspot.com.br)

 

JUROAFONSO ANTONIO MACHADO

Docente e coordenador do PPG- Desenvolvimento Humano e Tecnologias da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia.